Excertos da obra autobiográfica de Florildo Atazanado, poeta e escritor oriundo da Ribeira dos Encalhados, falecido este ano com uma apoplexia fulminante após ter deitado abaixo sete pratadas de Transmontana.
Caía a noite na cidade. O trânsito abrandava. Além, algures, por todo o lado, acendiam-se janelas, varandas e nas ruas começava já a poisar a poeira de mais um dia de semana. O trabalho cansa, mesmo quando não é trabalho e naquele dia José sentia-se mais estoirado do que nunca. Mal entrou em casa desabou no meiple, sem sequer se dar ao trabalho de despir a roupa saturada de suor. Naquele momento só pensava em duas coisas: um belo zapping televisivo e comida, muita comida. Enfardar era um dos seus passatempos preferidos, um momento único e orgásmico, apenas ultrapassado por um bom golo do Benfica.
Uma panela fervilhava enchendo a casa de um apetitoso odor a coisa boa. José levantou-se do meiple e, coçando o bandulho amigo, avançou a salivar para a cozinha. Ninguém à vista, felizmente - irritavam-no os constantes reparos da megéra por causa do que comia ou deixava de comer, pelo que fazia ou deixava de fazer...que se lixasse! Destapou a panela e lá dentro viu, sorridente, uma carne picada a nadar num espesso molho de tomate. Sôfrego, guloso, engolindo a onda de saliva que o ameaçava sufocar, apressou-se a ir buscar um carcaça. O pão era a sua perdição e batia-se com ele até de madrugada se fosse preciso...cinco, oito, dez carcaças, o que houvesse. Delicadamente, como se de um acto religioso se tratasse, começou a encher a carcaça com colheradas daquela mistela fumengante.
"O que estás a fazer?" gritou a megéra ao entrar de rompante na cozinha. "Isso é o recheio da lasanha que vou fazer. Mas tu não te controlas?!"
Ficou parado com a colher de pau na mão a meio caminho da carcaça. Fora apanhado! Balbuciou ainda um trémulo protesto: "Mas, estava-me a apetecer...!" Depois tudo se revoltou dentro dele e com um olhar húmido para a panela, retendo a água que lhe crescia na boca, atirou com a carcaça, com a colher de pau e indiferente ao molho que salpicara o fogão e as paredes, saiu da cozinha.
Nada! Nada de nada! Nem os canais da TVCabo estavam do lado dele. Ficou-se pelos anúncios, contendo a raiva por causa daquela carcaça não comida. Desta vez teria orgulho e não haveria de tocar na porcaria da lasanha que a megéra estava a fazer.
Cheirava bem a lasanha. Ouviu o raspar dos garfos nos pratos, os risos satisfeitos e...nada, nem um "Não vens comer?". Era-lhes indiferente a sua necessidade de enchimento, a fome dolorosa que lhe corroía o estômago e a alma de homem incompreendido. Casara para aquilo...!
Pela calada da noite, madrugada adentro, maldizendo a sua sorte, lá foi humilhado enfiar a colher no que sobrava.
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